quinta-feira, 19 de julho de 2007

Há dois anos eu dormi com a TV ligada, um dia. Fiquei vendo um desses concursos de miss Brasil, de gosto mais do que duvidoso, exibido pela Band. Dormi, óbvio, porque naquela época as misses (será esse o plural para miss?) continuavam chatas, como sempre foram, como ainda o são, até hoje. Estava vendo esse troço machista, onde todas as garotas bonitas choram emocionadas, com seus cabelos cuidadosamente esculpidos em laquê, seus sapatos do Fernando Pires e suas faixas medonhas. Se o clichê há alguns anos para livro preferido era “O Pequeno Príncipe”, naquele ano, me lembro bem, livro de miss era “O Código da Vinci”. Nojo.

Mas é aquela coisa. O sono ia me vencendo, a opção na Globo era algo como Linha Direta, naqueles causos em que espíritos surgem em edifícios incendiados, e eu tenho medo de alma penada, hoho. Sintonizei na Band, concurso de miss. Não devo ter resistido 15 minutos acordada, não pus a TV no timer e dormi como um anjinho, enquanto Astrid Fontenelle dizia seus achismos sobre as belezas típicas dos estados do Brasil.

Dormi com a TV ligada, volume alto. Devo ter me dado conta disso por volta das 4 da manhã, quando acordei e finalmente desliguei a TV, onde algo de teor evangélico ocupava a grade. No dia seguinte, fui para o trabalho, vida que segue. E, à noite, ao retornar, recado do porteiro. “A dona Lourdes, do 310, está atrás de você.” Fiquei curiosa, a única Dona Lourdes que eu conheci era a minha tia avó, e ela tinha morrido há anos. Não tenho amigos no meu prédio. Não paro em casa, me reservo aos “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” típicos de uma moça bem educada no elevador. Seguro a porta quando alguém está carregando sacolas, sorrio para os cachorros e para algumas crianças que não me sejam ameaçadoras. Meu prédio tem muitos velhinhos, e eu até que acho isso bonitinho. E tinha uma tal de Dona Lourdes atrás de mim.

Liguei para o apartamento da senhora, atendeu uma velhinha e me passou um senhor esporro, dizendo que a minha tv ligada no silêncio da noite subiu o andar que nos separa e prejudicou seu sono. “Velhos sofrem de insônia, minha filha, e eu não consegui dormir por sua causa.” Concordei totalmente com ela, pedi milhões de desculpas, falei que ia tomar mais cuidado, e expliquei pra ela que era um concurso de miss, mas que ela devia concordar que eu não tinha como permanecer acordada assistindo. Dona Lourdes foi compreensiva, e desde aquele dia eu tomo cuidado com o volume, não por causa dos vizinhos deste andar, ou por causa do apartamento de cima, mas por causa da velhinha com insônia do terceiro andar. Nunca vi Dona Lourdes. Toda velhinha no elevador podia ser ela, não sabia. Até hoje.

Supermercado. Uma velhinha comprando queijo, pão, ovos e frutas. Fofa, baixinha, levemente acima do peso, com uma meia daquelas compressoras pra varizes, eu acho, cabelo branquinho, óculos escorregando por cima do nariz. Andava devagar, escolhia latas de conservas, checava preços e datas de validade. Não sei por que me chamou a atenção. Bonitinha, me lembrou tia Dadá, a tia avó mais querida que eu tive, e que morreu jovem, com 93 anos, um choque para a família. Na hora de pagar a conta, essa velhinha pediu que o supermercado levasse as compras pra ela, e deixou nome e apartamento: Bloco 5, apto 310. Nem precisei ouvir o nome. Eu sabia que era a Dona Lourdes. Pensei em me apresentar, saber mais sobre ela, dizer que eu sempre tomo cuidado com a tv pra não acordá-la, etc. Não fiz nada disso. Quem sabe, uma hora dessas, eu subo dois andares e me apresento?

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